Capítulo 14, Marcas

14

   Por incrível que pareça, John acordou mais cedo que a mamãe naquela manhã.
   -Nat, acorda.
   -Estou acordada.
   -Você vai mesmo me levar a escola hoje?
   -Vou.
   -Então acorda.
   -Já estou acordada.
   -Mas então abre os olhos.
   Com os dedos afastei minhas pálpebras.
   -Pronto, abri.
   John riu e foi para o seu quarto se arrumar. Eu me levantei e fiz o mesmo. Coloquei uma calça de lavagem clara, uma regata preta, um casaquinho branco com bolinhas pretas e o meu all star branco. Enquanto me arrumava, fiquei pensando no que eu diria para a professora de John. Era um assunto muito delicado de se falar, mas tinha certeza de uma coisa; o que quer que eu falasse, não falaria na frente de John. Saí do quarto e mamãe me olhou surpresa.
   -Não foi a escola?
   -Não... – Fiz uma pausa, John me olhou seriamente pra que eu não falasse o motivo, ninguém queria preocupar a mamãe, ainda mais que quando mexe com os filhos dela é capaz de um escândalo ser montado na escola. – Não estou muito disposta pra aula hoje.
   -Você está bem?
   -Estou sim, só não estava com vontade mesmo.
   -Tudo bem desde que você não fique faltando muito.
   -Você sabe que não vou fazer isso não é mamãe?
   -Eu sei.
   -Ah mãe, pode deixar que eu levo John na escola hoje.
   -Algum evento especial pra você querer fazer isso? – Ela olhou desconfiada.
   -Não, só estou com vontade de dar uma caminhada.
   -Tudo bem, eu deixo você levá-lo. – Sua expressão de desconfiança não mudou.
   Acho que consegui contornar a situação. Sentamos ao redor da mesa e comemos tranquilamente. Quando chegou a hora, John pegou a mochila, nos despedimos da mamãe e saímos em direção a sua escola.
   -Você tem certeza de que quer falar com a minha professora sobre o que aconteceu?
   -Tenho.
   -Não sei se é uma boa idéia.
   -E por que não seria?
   -Porque ela vai xingar os meus colegas e eles vão saber que fui eu que contei, e vão ficar bravos comigo. – Ele realmente estava com medo.
   -John, fica tranquilo que eu vou resolver isso.
   Quando chegamos à escola, nós dois passamos pelo portão e entramos no corredor da sala de John. Os tais colegas caminhavam em nossa direção, John os identificou discretamente para mim. Eu não consegui controlar a raiva, minha vontade era de lhes dar os tapas que eles não ganharam dos pais. Mas tudo o que eu fiz foi encará-los fulminantemente, não disfarçando o quanto eles me desagradaram. Eles me olharam assustados e desviaram o olhar. Quando chegamos na sala, a professora já estava lá. John entrou e sentou-se em sua carteira. Eu chamei a professora para conversar fora da classe. Ela mandou todos os alunos entrarem e começamos a conversa.
    -Algum problema? – Ele me indagou preocupada.
   -Bom, John ontem apresentou um comportamento estranhamente entristecido. Eu me preocupei e perguntei o que havia acontecido, ele primeiro resistiu um pouco, mas depois me contou que os seus colegas riram e debocharam dele porque ele tecnicamente não tem um pai. Porque o nosso pai faleceu, quando John ainda era pequeno. E isso me entristeceu muito, e eu gostaria apenas, se não tiver problemas, que você conversasse com seus alunos sobre isso, pra que isso não fique impune. John pareceu extremamente ferido com tudo isso.
   -Eu não sabia que isso tinha acontecido, e eu peço desculpas pelos meus alunos. John sempre foi um garoto muito amável, e lamento pelo acontecido. Vou conversar com meus alunos sobre isso.
   -Eu só te peço uma coisa. Converse com eles longe de John, não quero que John se entristeça de novo por causa disso. Cada vez que alguém toca no assunto da morte do papai, ele fica muito abalado.
   -Tudo bem, mas você sabe quem foi que fez isso?
   -Um grupinho de meninos, que quando eu cheguei estavam aqui fora todos juntos.
   -Mike, Leonardo, Raphael e Nicholas. Eles aprontam muito. Vou conversar de perto com eles pode deixar.
   -E mais uma coisa, não deixa eles fazerem nada com John tudo bem? Ele está com medo de que eles fiquem bravos, e façam alguma coisa.
   -Vou fazer o possível, não se preocupe.
   -Muito obrigado, muito obrigado mesmo.
   -Capaz, é o meu dever de educadora.
   -Não vou te incomodar mais, vou indo pra casa.
   -Muito obrigado por me informar sobre isso, eu não fazia ideia do que havia acontecido.
   -Tudo bem.
   Nos despedimos e eu voltei pra casa, com sentimento de missão cumprida. Victor a essa hora devia estar na loja, então resolvi dar uma passada por lá de surpresa, estava realmente feliz. Quando cheguei na loja, Victor estava passando um paninho nas guitarras da parede. Fui pé por pé, cuidando para que ele não notasse a minha presença e coloquei minhas mãos sobre os seus olhos.
   -Adivinha quem é?
   -Olha, eu não sei.
  Eu dei um beijinho em sua bochecha.
  -E agora?
  -Fica mais fácil de eu saber se me beijar a boca.
   -Idiota. – Soltei as mãos rindo.
   -Oh, é você. – Ele falou debochando com seu sorriso moleque típico.
   -Engraçadinho. Então, fui levar John na escola e resolvi passar por aqui.
   -Adorei a surpresa, mas aconteceu alguma coisa pra você ter faltado a aula?
   -Tinha que conversar com  professora de John sobre algumas coisas.
   -Aconteceu alguma coisa com ele?
   -Aconteceu. Foi uma situação chata, parece que uns colegas riram dele pelo fato de ele tecnicamente não ter um pai. Fiquei revoltada, fiquei com muita raiva, minha vontade era de quebrar toda aquela escola, e fazer aqueles garotos levarem a surra que não levaram de suas mães.
   -Nossa, que moleques idiotas. Estão faltando pais pra educarem essas crianças. – Ele me olhou com a cara fechada.
   -Foi exatamente o que eu pensei. A minha vontade era de dar uma surra neles, mas só conversei com a professora.
   -Fez bem. – Uma pausa surgiu quando ele voltou a passar o paninho nas guitarras.
   -Amor, você quer ajuda com alguma coisa?
   -Só se você quiser me ajudar a limpar essas guitarras.
   -Com você? Até comer brócolis. – Fui até o depósito e peguei uma flanela. Comecei a limpar uma fileira de guitarras na vertical, ao lado dele. Ele limpava concentrado em alguns detalhes de algumas guitarras, e isso era tão lindo de se ver. Subi as escadas e pus-me a limpar enquanto Victor segurava os pés da escada. De repente ele começou a sacudir a escada e dar risada com o meu nervosismo lá em cima. – Victor, para com isso antes que eu desça aí e...
   -E o que você vai fazer? – Sua cara de moleque levado me dava vontade de apertá-lo.
   -Não duvide do que eu sou capaz mocinho. – Levantei uma das sobrancelhas.
   -Duvidei. – Victor sabia que aquela era a palavra mágica que me motivava a fazer alguma coisa. Desci da escada mais do que depressa, Victor foi se afastando e ziguezagueando pra eu não pegá-lo, ele ria igual uma criança, até que (não querendo me gabar, mas eu sempre fui muito ágil) o peguei. – E agora, o que vai acontecer?
   -Isso. – Aproximei meu rosto do seu, e quando ele já ia fechando os olhos para me beijar, desviei a boca para sua bochecha e o dei uma mordida.
   -Ai!
   -Você duvidou.
   -Doeu.
   -Ninguém aqui mandou você duvidar.
   -Você é má.
   -Sim, eu sou. - Fiz uma pausa, voltei meus olhos pro chão, depois olhei pro relógio. - Amor, infelizmente vou ter que ir pra casa fazer o almoço.
   -Ah... – Ele fez cara de criança mimada quando não ganha o que quer. – Achei que você ia ficar mais aqui comigo.
   -Você já vai ter que me aguentar a tarde inteira.
   -Pra mim não é sacrifício nenhum. – Ele pôs seu braço direito ao redor da minha cintura.
   -Sério amor, eu tenho que ir mesmo.
   -Tudo bem então minha princesa.
   Ele me deu um beijo nos lábios.
   -Te amo.
   -Eu também te amo.
   Fui pra casa mais leve, como se estivesse realizada. E eu estava. Anna me ligou, com a voz entristecida, na verdade estava entre soluços.
   -Nat, pode me ouvir agora?
   -Claro que posso, o que aconteceu?
   -Kevin terminou comigo.
   -Como assim? Por quê?
   -Não sei, ele simplesmente disse que o sentimento havia acabado, e terminou tudo. Eu o amava Nat, e ele foi um idiota.
   -Anna, melhor que ele terminasse do que ficasse te iludindo com um sentimento que já não existia mais. Fica calma, o mundo não acabou. Levanta a cabeça e segue em frente, você é linda, rapazes bons que te queiram não vão faltar.
    -Não é bem assim. Eu queria ele, você sabe que eu o amava.
   -Eu sei, por enquanto vai ser assim, mas daqui a pouco você conhece alguém especial que vai te fazer esquecer dele.
   -É, você tem razão. Obrigado. Vou fazer almoço agora.
   -Fica bem aí por favor, e qualquer coisa me liga.
   -Pode deixar. Te amo.
   -Também te amo sua doida. Beijo.
   -Beijo.
   Eu conhecia Anna, sabia que ela ainda ia chorar e isso me preocupava. Mas quando ela está assim, deixá-la sozinha é a melhor opção. Sempre foi assim, no final ela sempre supera tudo e fica bem, ela era mais forte do que parecia. Cheguei em casa, preparei o almoço, e quando mamãe e John chegaram nós almoçamos. John parecia ter voltado ao normal, acho que os garotos não voltaram a incomodá-lo, pelo menos assim eu esperava que acontecesse. Depois de comer me arrumei como de costume e parti pro serviço.
   Enquanto caminhava em passadas largas rumo a loja me peguei refletindo sobre coisas que eu jamais refletiria. Uma linha de pensamentos filosóficos atravessou a minha mente, e na ponta dessa linha, uma pergunta muito feita nos últimos dias. Será que Deus existe mesmo? Eu poderia naquele momento ter pensado coisas do tipo; “Claro que sim, porque ele é a vida!”, ou “claro que não, se ele existisse o mundo não estaria desse jeito”, mas não foi essa a sequência que eu segui. Pensamentos desse tipo já viraram clichê em nossos dias. Se Deus não existe, o que explica o universo? Porque eu simplesmente não consigo acreditar que um simples átomo gerou cada um desses detalhes maravilhosos. Mas, se Deus existe, por que eu não consigo senti-lo? Nada me explicava essas coisas, e nada do que eu pensava parecia fazer sentido pra mim. Finalmente, pra interromper meus pensamentos conturbados cheguei ao serviço.
    Infelizmente, a tarde foi movimentada. Nem podíamos tocar direito, como era sexta-feira, já desconfiávamos que seria assim. Dia de festa na cidade, os componentes das bandas locais sempre apareciam na loja atrás de peças como cordas de violão, baquetas, afinadores automáticos, pestanas, enfim. Sentia Victor tão distante, mesmo com a loja cheia, parecia estar em outra órbita.
   18h00 finalmente. Victor fechou a loja.
   -Amor, não vou poder te levar em casa hoje, tenho que buscar a moto na oficina antes de começar os preparativos pra festa.
   -Tudo bem, eu tenho que ir depressa pra casa. O Daniel vai passar lá pra buscar minha apostila de estudos pro vestibular.
   -Ah você tem que se apressar pra ver o Daniel, é isso? – Ele não parecia estar brincando. O ciúme que ele sentia do Daniel era muito grande. Seus olhos mostravam-me frustração, ciúme e raiva.
   -Deixa disso Victor. Você sabe que ele é só meu amigo. Tenho que me apressar porque ele vai passar lá antes de ir trabalhar, não posso atrasá-lo. – Falei com entonação séria o suficiente pra fazê-lo acreditar em mim, mas descontraída o suficiente pra que aquilo não parecesse uma briga.
    -E por que sua mãe não entrega a apostila pra ele? – Sua desconfiança me irritava. Seus olhos ainda duvidosos me olhavam sem se mover.
    -Por que ela não sabe onde está. – Meu tom de voz mudou, para “você ainda não percebeu a besteira que está falando?”
   -Será que é só isso mesmo? – Ele falou isso com um olhar desafiador que me tirou do sério.
   -Eu não acredito que você está duvidando de mim. – Alterei um pouco a voz, não berrei no meio da rua, apenas falei alto o suficiente pra demonstrar minha frustração. - Você sabe melhor do que ninguém que eu não gosto dele. Sabe melhor do que ninguém que ele é apenas um amigo. Talvez você queira ir sozinho na festa, quem sabe arranje uma namorada nova que não te deixe desconfiado não é?
    -Eu não estou duvidando de ti, só não confio naquele cara.
    -Não foi o que pareceu. – Me virei e saí caminhando com pressa, contendo as lágrimas que insistiam em sair. Aquilo havia me ferido, me cortado. Victor estava sim desconfiando de mim. Nunca pensei que iria ouvir aquilo dele, foi a nossa primeira briga pesada. Ele havia desconfiado de mim.
    -Nat, espera.
    Eu já estava atormentada pela raiva que sentia. Todos os pensamentos maus estavam me atormentando. Não dei ouvidos a ele e segui meu caminho. Ele desconfiou de mim. Isso soou como uma traição. Ele me conhecia melhor do que ninguém. Ele não podia desconfiar de mim. Quando já estava longe o bastante da loja, soltei um suspiro que se esvaiu junto com as lágrimas. Não esperava aquilo de Victor. Não dele. O ciúme que ele sentia de Daniel me tocava como uma ofensa. Ele nem tentou ir atrás de mim, ele sabia que quando eu ficava irritada não adiantava de nada. Tinha que me dar um tempo pra esfriar a cabeça, se não minha teimosia fazia a situação piorar.
   Dava passos largos e firmes, deixando a raiva transparecer. Não estava nem um pouco preocupada com o que iam pensar de mim. Tudo girava em minha cabeça, Victor havia sido ridículo com essa desconfiança. Quando cheguei em casa, sequei as lágrimas no portão pra não ter que ouvir a série de perguntas que ouviria se mamãe e John me vissem chorando. Entrei em casa, e fui direto para o meu quarto. Tranquei a porta me abracei em minha almofada e chorei todas as lágrimas de raiva que queimavam dentro de mim. A campainha soou. Era Daniel. Enxuguei as lágrimas, dei uma ajeitada na maquiagem correndo. Peguei a apostila e fui até a porta.
   -Oi Nat.
   O perfume dele invadiu a casa. Era muito bom, mas acho que ele deu uma exagerada. Ele estava bonito. Acho que era isso que fazia Victor ter mais ciúmes ainda. Daniel era um cara bonito. Mas não adianta, nada justifica a desconfiança dele, Daniel podia ser bonito, mas era Victor quem eu amava, e ele sabia disso. – Oi Daniel. Entra.
    -Não posso demorar, passei só pra pegar a apostila mesmo. Você está bem? Digo, parece abatida. – Ele falou isso com uma preocupação aparente.
   -Estou bem sim, é só impressão sua. – Forcei um sorriso. – Bom, não vou te atrasar mais, a apostila está aqui. – Entreguei a apostila em suas mãos.
   -Obrigado Nat. Se precisar de qualquer coisa, – Ele segurou minha mão – me liga tudo bem?
    -Tudo bem sim. Obrigado. – Era evidente que eu não tinha o convencido, soltei minha mão.
    -Bom, então tchau Nat. – Ele falou meio sem jeito.
    -Tchau Daniel. Beijo.
    -Beijo.
    Ele virou as costas e saiu. Eu fechei a porta e voltei pro meu quarto. Decidi que precisava ir dormir. Talvez o sono me fizesse esfriar a cabeça. Deitei em minha cama e depois de mais algumas lágrimas de mágoa peguei no sono. Sono profundo. Teria dormido mais se não fosse... Aquele pesadelo. Nunca vou me esquecer.
    Eu me via em uma estrada muito feia, deserto dos lados, eu estava cansada e ferida. Quando de repente vi Victor vindo em minha direção com muita pressa e um sorriso se abriu em meu rosto, até que... Um caminhão atravessou a rua, Victor não viu e bateu no caminhão. Eu o vi atirado no chão, muito sangue ao seu redor e comecei a chorar. Saí correndo em sua direção chamando pelo seu nome, mas não o alcançava. Era como se toda a minha corrida fosse em vão. Então eu acordei desesperada, ofegante com uma lágrima no canto do olho. Pesadelo horrível. Olhei no celular, eu havia dormido por duas horas. Eram exatamente 20h40. Havia uma sms não lida, remetente; Victor. Hora em que foi recebida 19h35.
    “Minha linda, desculpe ter desconfiado de você, sei que nunca devia ter passado uma coisa dessas pela minha cabeça. Mas você sabe que eu não consigo confiar naquele cara, e acho que acabei descontando isso em você. Eu te amo, e sei que você me ama, e nunca me deu motivos para desconfiar. Me perdoa por favor. Te amo e sempre vou te amar, não importa o que aconteça. E ah, lembre-se sempre que a sua felicidade é a minha felicidade.”

    Um sorriso se abriu, eu estava prestes a responder sua sms quando meu telefone tocou. Era Willian. O que ele queria? Ele nunca me ligava, será que aconteceu alguma coisa? Minhas pernas tremeram e eu me sentei para atender.

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